Como os portugueses passam férias

feriasCavaco Silva pediu aos portugueses para irem para fora cá dentro. Mas a crise parece de férias.

 

Os operadores turísticos não se queixam – o Algarve está cheio, os voos para o estrangeiro também.

 

Casaco negro, gravata cinzenta. O semblante tão carregado quanto as palavras: “Aqueles que podem fazer férias, devem fazê-lo cá dentro”. O descanso dos portugueses entrava assim no discurso do Presidente da República. A agenda de Cavaco Silva assinalava 5 de Junho: garantir solenidade à inauguração do Pavilhão dos Desportos de Albufeira, pôr o País a discutir como as férias podem aliviar a crise. Nesse mesmo dia, já o sol tombava sobre as colinas de Lisboa, quando Alexandra Piedade regressou a casa. As notícias desfilavam no televisor, ela atirava fadigas para o sofá. Não recorda a banda de música, tão-pouco o primeiro instante da obra feita. Ficaram-lhe, isso sim, as palavras do presidente. Soma 41 anos, há muito sabe que crise e férias são assunto sério.

 

Viajar é verbo com entrada certa nos planos de Alexandra. Já o conjugou vezes sem conta – Índia, Marrocos e Cuba enchem o álbum dos sonhos cumpridos, mas a geografia nunca se esgota: “Há muito mundo para conhecer”. Filha da Marinha Grande, atravessou a infância agarrada às férias dos pais, o carro sempre às voltas em Portugal: “Hoje, as pessoas viajam muito mais”. Guarda o sorriso de menina, duas licenciaturas: uma em Economia, outra em Psicologia. Aventura-se no mestrado e trabalha na Fundação Calouste Gulbenkian – pouco minuto lhe sobra. Agora, férias a dourarem o horizonte, recorda os argumentos do presidente. Naquele dia, na televisão, os antigos modos de professor de economia: “Neste tempo difícil que atravessamos, os portugueses devem fazer turismo no seu próprio país, pois é uma ajuda preciosa…”. O rosto cerrado: “As férias passadas no estrangeiro representam importações e aumentam a dívida externa portuguesa”. O tom patriótico até mexeu com a psicóloga, mas nada interferiu nas suas ideias: “Antes do apelo, e por outros motivos, já decidira ficar em Portugal.” Não é a única, todas as agências de viagem contactadas pelo “Diário Económico” afirmam não ter sentido a intervenção do presidente.

 

Alexandra conta os dias que faltam para se fazer à estrada. A mala cheia de leituras e descansos planeados. Faz parte dos portugueses que partem de férias nos meses de Verão. Este ano, pensou abandonar a cidade mais povoada do que o habitual. Atenta às notícias, dera conta de cenários sobre o ócio nacional. Em parceria com o Wall Street Journal, a GFK realizou um estudo sobre as férias em 19 países. Em Portugal, estimava que 66% das pessoas não sairia de casa e dos que iriam a banhos 69% ficava no País. A conclusão deixa Tiago Rodrigues, director de marketing e tecnologia do operador turístico Soltrópico, de sobrolho franzido: “A classificação do consumidor português surpreendeu-me. A crise não se tem reflectido nas férias. Em 2009, os resultados foram muito bons e, em 2010, a perspectiva é sensivelmente igual, o que não aconteceria se as pessoas ficassem em casa.” O ano passado, a empresa facturou cerca de 24 milhões de euros e transportou mais de 37 mil passageiros, sendo Cabo Verde o destino de eleição: “Se aumentasse tanto a procura de programas nacionais, sentia-se uma quebra nos voos.” Com voz segura, arruma o assunto: “Há é uma diminuição do montante gasto. As pessoas procuram destinos mais económicos e as viagens estão mais baratas. É difícil analisar os estudos sobre turismo, há uma grande disparidade nos dados.”

 

Hugo Madeira, 32 anos feitos e aliança a brilhar no dedo, faz parte dos 47,2% de portugueses que, a fazer fé no estudo elaborado pela Marktest para o portal de reservas Hotels.com, não deixa a palavra crise tomar assento na viagem de descanso. Criado com a intenção de apurar se a crise afectava as escolhas em tempo de férias, o inquérito assegura que 34% dos inquiridos mantém a ideia de ir para fora. Espanha lidera os destinos favoritos. Hugo nada se espanta, anda a sonhar com a hora de trocar o fato pelos calções de banho.

 

Assume as funções de responsável de controlo de gestão numa empresa farmacêutica, salário não é assunto que o apoquente. Começou a trabalhar ainda não largara os bancos da faculdade, 1.500 euros de ordenado. Daí para diante, à medida das conquistas, somou destinos: “Mato-me a trabalhar e, ao invés de guardar o dinheiro debaixo do colchão, viajo”. A reluzir na memória, as andanças no México, as aventuras no Brasil, a sedução de Nova Iorque. Para trás, ficam os tempos de miúdo – ora a farda de escuteiro ora as férias com os pais no parque de campismo da Costa da Caparica: “Não havia possibilidades para mais, por isso, agora aproveito”.

 

Está sentado numa esplanada da capital, a camisa branca, os óculos Ray-Ban junto ao peito. O apelo do presidente nada mandou na sua escolha: “Percebo a lógica, mas não concordo. Se todos os países fizessem o mesmo, sairíamos a perder.” Acalenta o sonho de conhecer Cuba e era lá que estaria, não fosse a filha pequena: “Enquanto é bebé, preferimos não fazer viagens de avião longas. Só por isso fico em Portugal”. Ainda há pouco regressou dos Açores, agora vai passar uma semana no Algarve e outra no Sul de Espanha. Habituado às lides das finanças, faz contas a cada cêntimo: “Vou gastar o mesmo do que se fosse para longe… o problema é a criança. No Algarve, pago 1.300 euros por semana para quatro pessoas. Espanha é mais competitivo, um resort de cinco estrelas com tudo incluído custa 1500. Se pudesse ir para as Caraíbas, não saia muito mais caro”. O director de marketing da operadora Soltrópico joga com as mesmas parcelas: “Mesmo com o serviço adicional do voo, o Algarve pode ficar no mesmo valor do que Cabo Verde ou Tunísia”.

 

Ao contrário de quem prova os amargos do desemprego ou dos salários baixos, Hugo descobre possibilidades na crise: “Para quem tem um emprego razoável, é uma oportunidade. O empréstimo da casa baixou significativamente, os bens de primeira necessidade também. Há mais promoções de viagens, de roupa de marca… É mais fácil encontrar vagas nos infantários e os bancos eliminaram-me os custos das transacções. Por isso, este ano até há mais dinheiro para férias”. A agência de viagens Top Atlântico também não reclama. A romaria de Agosto pouco mudou: “A maior diferença prende-se com o aumento das reservas em cima da hora. As pessoas decidem ir de férias no momento”.

 

Alexandra Piedade não alinha na vertigem do último instante. Há muito decidiu passar os dias de Agosto entre a Costa Alentejana e o Barlavento Algarvio. Pertence à multidão que tenta escapar às multidões. Antes arrendar uma casa do que um quarto de hotel; perder três horas de carro e não uma eternidade num avião: “Cheguei à conclusão que para fazer praia não vale a pena ir para fora. Já estive no Sul de Espanha, no Sul de França, na Croácia… Em Portugal, a oferta é melhor”. Ainda assim, se tivesse dinheiro de sobra e a certeza do emprego jamais lhe escapar por entre os dedos, rumaria ao Mediterrâneo, pé-de-meia gasto a fazer vela. Mas sabe que ninguém nasce com salvo-conduto, os tempos aconselham cautelas.

Em Setembro, a crise pode regressar de férias.

 

 

 

 

Ana maria Fonseca / in Económico

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