Madeira – Relatos de momentos trágicos

mau-tempo-madeira1O que terá sobrado da casa de Maria José? Ela fugiu com os três filhos sem olhar para trás. Correu pelo Caminho dos Moinhos e abrigou-se na Junta de Freguesia de Santo António, no Funchal, até os bombeiros chegarem. Não teve tempo nem para agarrar a lata de café com os 43 euros em notas enroladas que sobraram do subsídio de desemprego. Deixou a lata de café, deixou a televisão ligada e deixou a máquina de lavar roupa a trabalhar.

 

Carlos Nascimento e a mulher fizeram a mesma estrada que Maria José, mas voltaram para trás. A ponte de ferro caiu e não conseguiram atravessar. Refugiaram–se na casa do compadre Agostinho e com a enxada tentaram desviar a rota da água que entrou pelo quintal: “Foi nesse momento que ouvi um barulho cada vez mais forte”, conta o operário de construção civil.

 

Lá de cima rebolavam troncos de eucaliptos, telhados, lama e pedras. Só teve tempo de se encostar ao muro. Cecília, a mulher de Agostinho, demorou a reagir. “A enxurrada levou-a.” Agostinho, o marido de Cecília, puxou-a pelo braço, mas deixou-a escapar: “Foram os dois por ali abaixo, não consegui fazer nada.” O corpo de Cecília apareceu ontem pela manhã a “oito ou nove quilómetros de casa”, explica Carlos. Agostinho foi resgatado pelos bombeiros e desde a noite de sábado está nos cuidados intensivos do Hospital Dr. Nélio Mendonça.
José Carlos Ribeiro deixou a mulher, os três filhos e a sogra no piso de cima e saiu para pedir socorro, no Caminho do Trapicho. A água rebentou-lhe a porta e as janelas do rés-do-chão. As camas, o guarda-roupa e a cómoda foram com a enxurrada: “Não podia fugir nem para cima nem para baixo”, conta o funcionário do matadouro municipal do Funchal. Mesmo assim, atravessou a corrente e chegou ao quintal: “Mal saí de casa, fiquei enterrado com lama até ao pescoço.” Pensou que ia morrer: “Ai meu santo Jesus… ajude-me, meu santo Jesus!”

 

Não sabe se foi da prece, mas logo a seguir estendeu o braço e agarrou-se a um rochedo. Ficou quieto até a enxurrada passar por ele. Conseguiu chegar à estrada, entrou no carro, o carro voou até cair em cima da carrinha do padeiro: “A tampa de esgoto saltou e projectou o meu Clio, que ficou todo amassado.”

 

Fez o resto do caminho a pé até à Casa de Saúde São João de Deus, na zona baixa do Funchal. Foi chamar o enfermeiro Sérgio e os outros funcionários da instituição, que agora tiram portas velhas e tábuas de madeira da serralharia para montar estrados no meio da lama. Mais vizinhos apareceram e vieram ajudar. Trouxeram os filhos, a mulher e a sogra de José Carlos. Trouxeram 32 habitantes do Caminho do Trapicho até à casa de saúde, onde 113 desalojados passaram as duas últimas noites.

 

Anabela Ramos chegou à Casa São João de Deus muito mais cedo. Fugiu do Caminho do Trapicho assim que o ribeiro transbordou. A irmã e a cunhada ficaram em casa e, enquanto subiam as escadas para os quartos, a água entrou na sala e “foi por aí acima” atrás delas. Saíram pela janela, saltaram para o telhado da vizinha, mas a moradia também estava a desfazer-se. Usaram um escadote para fazer de ponte até à terceira habitação. Encolheram-se num dos cantos da varanda à espera de socorro. Esperaram oito horas até os bombeiros chegarem.

 

Para sair da lama, é preciso gatinhar: “O corpo, de pé, afunda-se”, avisa Luís Alberto Gomes. Foi a rastejar que conseguiu chegar à estrada principal e sair do Caminho do Trapicho até pedir ajuda aos bombeiros. A grua das obras na futura via rodoviária Cota 500 tombou em cima de duas das casas e matou seis vizinhos que não quiseram vir com Luís Alberto. Graça Bento e os dois netos estão entre os mortos, conta o madeirense: “No meio desta desgraceira, tive muita sorte. Estou vivo.”

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