O professor que criou uma cidade para guardar a tradição

Manuel João Melo - Oficina Museu

Por detrás de uma garagem aparentemente comum na vila das Capelas, em São Miguel, abre-se uma oficina-museu, um projeto de Manuel João Melo, que recria uma cidade do passado, através de milhares de objetos históricos.

Na rua do Loural, por entre um cenário bucólico composto por residências, quintas e pastos, surge a pequena garagem. Cá fora, ouve-se apenas o chilrear de pássaros e o mugido de vacas que pastam numa paisagem tipicamente rural. A placa identificativa “Museu” deixa, contudo, antever que aquela garagem de portão verde é, afinal, diferente de todas as outras.

Aberto o portão, ergue-se uma cidade: tem ruas, espaços de comércio e de serviços, repletos de objetos históricos. É a oficina-museu das Capelas, projeto de um homem só, um professor primário reformado de 82 anos.

“Esta foi a primeira peça a vir para aqui. O senhor disse-me: ‘eu só uso isso uma vez por ano e em vez de estar na garagem num canto fica aí’”, começa por dizer à agência Lusa Manuel João Melo, apontando para um robusto arado de madeira à entrada do espaço.

Aquela peça marcou o início do museu, que nasceu no espaço onde o responsável ainda vive. Corria o ano 1998. Manuel João Melo utilizava a garagem como oficina de criação dos seus trabalhadores artesanais, como os feitos a partir de escama de peixe ou os tradicionais presépios de lapinha açorianos – trabalhos que continua a fazer até hoje.

Começou por recolher as “coisas antes de irem para o lixo” e por receber “várias doações”, que chegavam “sobretudo quando havia mudanças de casa”. Percebendo o potencial que tinha em mãos, decidiu ampliar o espaço.

“Percebi que queria dotar a freguesia de um espaço que contribuísse para a dinamização e valorização da freguesia. Para esse espaço, comecei a recolher peças que estavam em riscos de desaparecer e apresentá-las com sentido pedagógico”, recorda.

O sentido pedagógico foi materializado na construção de uma cidade. Há casas, lojas, candeeiros, varandas e até uma fonte por onde a água escorre.

“Comecei por esta pracinha, depois mais uma coisa e outra, e grão a grão enche a galinha o papo, não é? Fui juntando mais um, mais um, mais um, e tenho outras que ainda não consegui montar porque não tenho espaço”, explica, já no centro de uma praça composta por um latoeiro, uma gráfica e uma loja de lembranças.

São mais de 37 casas – ou “oficinas”, como designa o proprietário. Percorrendo as ruas nessa viagem a meados do século passado, entra-se em tabernas e em mercearias, sai-se no posto dos correios, vai-se até à papelaria e à padaria, passa-se depois na farmácia, visita-se uma casa evocativa da pesca à baleia e vê-se como está a correr a produção na fábrica de tecelagem.

Há até uma casa do Espírito Santo, idêntica às que se vê em praticamente todas as freguesias açorianas, evocativa da religiosidade popular, e também uma sala de aula, com as carteiras em madeira antiga e com o retrato de Salazar devidamente emoldurado na parede.

“Já viu aqui o meu alfarrabista? Foi a última oficina a ser construída”, aponta Manuel João, no meio de um pequeno espaço entupido por centenas de livros, numa visita guiada ao espaço de mil metros quadrados.

Todas as oficinas são compostas por centenas e centenas de objetos, dos mais raros aos mais comuns. É impossível quantificar o número de peças ali presentes e também é arriscado avaliar o valor do recheio.

No fundo, são todos objetos que povoam o imaginário coletivo. Existem máquinas de escrever e jornais do século XIX, rádios antigos do início do século XX, mapas do arquipélago da Madeira datados de 1831 e um barco utilizado na caça à baleia no arquipélago em meados do século XX.

No alfarrabista que Manuel João mostra, exibe-se até um longo poster sobre o tipo de batatas existentes na Holanda. Mais ao lado, estão também as coleções de caixinhas de fósforos e de maços de tabaco, e uma panóplia de discos das estrelas musicais dos anos 60, 70 e 80 do século XX.

Qualquer descrição, por mais exaustiva que seja, ficará sempre aquém do infindável número de objetos que ali se encontram. De todos, não há um preferido para o colecionador.

“Todas as peças me deram riqueza. Para procurar as coisas e saber de onde vêm e o que faziam, obrigaram-me a conhecer as coisas. Também para fazer a montagem é preciso saber como é que funcionava. A gente não pode colocar de qualquer maneira”, diz o “senhor professor”, como é carinhosamente conhecido.

O museu foi erguido com o “sacrifício” de Manuel João Melo e com a “boa vontade” dos doadores, que passados todos estes anos, já são mais de 200.

“Isto não é um projeto para deixar aos filhos”, diz o professor, acrescentando que o museu só “traz despesa” e “rouba muito tempo”.

Para precaver o futuro daquele espaço, o responsável já mostrou vontade por várias vezes de doar o museu à Câmara de Ponta Delgada, mas nunca chegou a acordo com a autarquia.

“Eu estava disposto a doar, mediante umas certas condições. As condições era ter uma casa lá em baixo [no centro de Ponta Delgada] porque eu, como moro aqui, queria uma casa para não ficar na rua”, explica.

Mas, negócios à parte, Manuel João Melo não tem idade para abrandar nos projetos. Pelo menos é o que parece. O objetivo agora é construir mais um armazém para ampliar o museu e transformar uma das ruas numa avenida.

“Queria fazer um armazém ao igual ao outro, para ter mais 20 metros de museu. Só não está feito ainda porque não tenho dinheiro. O Euromilhões não há maneira de sair”, diz, entre risos, assumindo que não consegue parar.

As “contas já estão feitas”: o aumento do museu iria custar cerca de 60 mil euros e serviria para montar mais 10 oficinas. As peças para as compor já as tem.

“O meu sonho é montar aquilo [a ampliação]. Porque eu quando recolhi as peças, quando me entregaram as peças, não foi para ficar ali no canto. Foi para estar em exposição para as pessoas”, comenta.

Entretanto, a pandemia da covid-19 também “parou tudo”, como “um sismo” que destruiu um ano que “estava tão bem programadinho” e que iria ser “extraordinário e com imensas visitas”.

Em breve espera voltar a receber pessoas, até porque, defende, o “turismo deve ser feito primeiro dentro da própria região” e passados 22 anos de abertura ainda são muitos os açorianos que desconhecem aquele local onde a história brota à abertura de cada porta.

Até ter saúde, o professor Manuel João Melo, vai continuar a ser o guardião da tradição, um esforço para que o “velho não fique esquecido quando é empurrado para trás pelo novo”: “Isto é importante porque a vida é uma continuidade. E todos têm a sua posição e a gente necessita de ver como é que foi para projetar para a frente”.

 

 

Lusa / Fotos @thebestofazores.com

Pub

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here