Viver nas Flores
Tenho pena, tenho mesmo muita pena, que a ilha das Flores tenha de sofrer o efeito de furacões que, na maioria das vezes, não são fenómenos meteorológicos, são os furacões do abandono e do esquecimento, que nos atingem no cerne da nossa existência e que são perpetuados há décadas.
De verdadeiros fenómenos naturais extremos, daqueles que nos marcam e ficam na história, daqueles em que os sinos da igreja tocam ao sabor das rajadas de vento, lembro-me de três: em fevereiro de 1986, em dezembro de 1996 e, no passado mês de outubro, o destrutivo, mediático e tão perturbador furacão Lorenzo. Sobrevivemos a todos. Recuperamos dos dois primeiros e, sabe Deus quando, havemos de recuperar do último! Nos rescaldos deste, muito havia a dizer, mas deixo isso para outros porque, neste momento, é um assunto de que todos falam.
Ao longo da nossa história, outros furacões fustigaram a minha ilha e, aos poucos, provocaram o seu definhamento. Dos mais recentes, destaco o desmantelamento da Estação de Telemedidas dos Franceses, em 1993, e a extinção da Estação Radionaval das Flores, em 1994. Ninguém se preocupou com as consequências que daí adviriam para a ilha, com o impacto devastador provocado por estas saídas na sua economia, nem tivemos direito a um Plano de Revitalização Económica. E por aqui fomos ficando… A população cada vez mais envelhecida, os jovens a sair sem oportunidades de voltar e a natalidade a decrescer. Com tudo isto, a ilha das Flores regista o maior índice de envelhecimento dos Açores, aliado ao facto de a sua população estar a diminuir de forma drástica e assustadora (perdeu 538 habitantes em 20 anos, o que equivale a uma redução de 12,4%). Todos estes fatores prejudicam a sua economia que é frágil per si, mesmo sem constrangimentos adicionais. E por aqui continuamos, envolvidos nesta espiral descendente… E a
ilha a morrer, ano após ano… E, em vez de se criarem expectativas positivas nas pessoas, em particular nos jovens, vai-se passando a mensagem de que esta não é terra para se viver e que os que aqui vivem nem sequer merecem o tanto que têm.
Num ato de cidadania e boa-fé, tentei partilhar algumas destas minhas preocupações com o vice-presidente do Governo Regional dos Açores, aquando da visita estatutária à nossa ilha, no mês de março de 2019. Não o interpelei na rua, num evento ou no hotel em que estava hospedado, fui ao atendimento público à população que foi divulgado, via CTT, a todos os florentinos. Apesar disso, fui tratada com arrogância, desprezo e uma má educação que ronda algo que não consigo descrever. São estes que fazem espetáculos mediáticos no lançamento do “Todos contam – Açores primeiro”, como um “movimento de participação cívica que vai bem para além das fronteiras partidárias ou das fronteiras ideológicas […] é também um exercício de liberdade, de liberdade para participar, liberdade para opinar, liberdade para propor, mas também liberdade para criticar, para
dizer-se que não concorda, para dizer-se que entendemos que deve ser diferente…”. Ainda há alguém que acredita nisto? Querem enganar quem?
E agora, sobre as Flores, os florentinos e as suas vivências, aqui vai:
– Viver nas Flores é, em primeiro lugar, e para que não restem dúvidas, receber o mesmo e pagar os mesmos impostos que um açoriano residente em qualquer outra ilha do arquipélago recebe (cumpre-me, ademais, esclarecer que não recebemos subsídio de fixação, nem temos benefícios fiscais, nem qualquer outra regalia);
– Viver nas Flores é pagar mais caro pela maioria dos produtos que compramos, pela casa que se reconstrói ou que se faz de raiz;
– Viver nas Flores é depender do exterior (em mais do que devíamos, mas isso é outra história), à semelhança das outras ilhas do arquipélago dos Açores;
– Viver nas Flores, ao contrário da mensagem que muitos querem fazer passar, não é ser menos culto nem mais preguiçoso que os outros ilhéus, não é trabalhar pouco, não é esperar tudo de mão beijada;
– Viver nas Flores é assistir, amiúde, a comentários públicos segregadores, julgando porventura que a distância a que estamos será perpetuamente suficiente para ficar sem resposta;
– Viver nas Flores é, demasiadas vezes, acomodar-se e conformar- se, e não reivindicar aquilo que é nosso por direito (só e somente só neste aspeto é que admito que nos chamem tolos);
– Viver nas Flores é confiar que nos enviem a encomenda certa (e já agora, em bom estado e bem embalada) e esperar que, no seu percurso, não seja encaminhada para outro destino;
– Viver nas Flores é pagar caro pelo transporte aéreo de uma encomenda que posteriormente é colocada num contentor para seguir para as Flores por via marítima, demorando às vezes semanas a chegar a este destino, e não ter direito a ser reembolsado, pelo menos, da diferença do valor entre os dois tipos de portes (refiro-me ao tempo “antes do Lorenzo”, não do tempo “depois do Lorenzo”);
– Viver nas Flores é, algumas vezes, levar mais tempo numa viagem aérea até S. Miguel, do que demoraria a chegar pela mesma via aos Estados Unidos, isto porque ficamos horas no Faial ou na Terceira à espera da ligação para terminarmos a nossa jornada;
– Viver nas Flores é não reclamar quando o avião cancela por condições atmosféricas adversas, porque somos conscientes e não queremos repetir a tragédia que nos atingiu há duas décadas;
– Viver nas Flores é ver o nosso voo cancelado num dia de verão, com as condições atmosféricas perfeitas porque, devido aos atrasos acumulados durante as sucessivas viagens daquele dia, já não há luminosidade natural suficiente para operar em segurança;
– Viver nas Flores é ser enganado, de forma contínua, sobre a certificação da iluminação da pista do aeroporto que provavelmente nunca vai acontecer;
– Viver nas Flores é ver o cabo de fibra ótica passar ao pé da porta mas não ter acesso a esse serviço porque isso não foi protocolado entre as entidades competentes;
– Viver nas Flores é, num espaço de 4 anos, ter 5 médicos a substituir a médica de família que se aposentou;
– Viver nas Flores é sujeitar-se a ter uma consulta com um “tapa-buracos” do médico de família (que felizmente não aqueceu o lugar nestas paragens) que parece que nos está a fazer um favor ou que nem está a ser pago pelo mau serviço que presta, um daqueles que certamente tem a formação académica necessária para exercer, mas a quem falta tudo aquilo que nenhuma universidade ensina;
– Viver nas Flores é, neste momento, não ter um único médico no quadro da Unidade de Saúde da Ilha;
– Viver nas Flores é poupar, para ter um pé-de-meia, para podermos, por nossa conta, sair da ilha para tratar da nossa saúde quando cá não conseguem dar resposta aos nossos problemas;
– Viver nas Flores é ver alterar decretos legislativos para benefício dos docentes das ilhas maiores, em detrimento das escolas e dos alunos das ilhas mais pequenas, sem ouvir a opinião das pessoas que estavam no terreno e que chamaram a atenção para as consequências que daí resultariam.
Aqui, não resisto a abrir um parêntesis para informar que afinal estas pessoas tinham razão e as previsões que fizeram estavam próximas da realidade atual, apesar de terem pecado por defeito pois, neste momento, a situação é pior do que qualquer antevisão feita. Mais uma vez ficou evidente que também se finge democracia, permitindo que se façam petições ouvindo fora de tempo (ou fazendo que se ouve) o primeiro signatário numa comissão, quando, à partida, não se pretende alterar uma vírgula àquilo que está em vigor – e esta foi mais uma catástrofe, por mão humana, que nos atingiu;
– Viver nas Flores é ter os filhos numa escola em que não é possível garantir a continuidade
pedagógica de um ano letivo para o seguinte, por existir uma grande rotação do corpo docente ano após ano (ou até não existir docente para ocupar uma determinada vaga);
– Viver nas Flores, ou melhor ser das Flores, é sair, ou ter saído, da ilha para prosseguir estudos suportados pelo suor dos nossos pais que trabalham, ou trabalhavam, maioritariamente na agricultura e pecuária, e de que muito nos orgulhamos;
– Viver nas Flores é ter o prazer e o orgulho de ver os resultados dos nossos alunos, nos exames nacionais, a ocupar os lugares de topo a nível regional, e ter de ouvir na rádio pública regional (programa Frente a Frente do dia 7 de dezembro p.p.) um ilustre terceirense, que até foi secretário regional da educação (durante oito anos) a comentar os resultados do estudo PISA 2018, nos termos que se seguem: “… Pelos dados estatísticos, já não sequer é o problema das escolas ou das ilhas que tenham menos professores ou que tenham mais dificuldade de fixação de quadros de qualidade porque, por exemplo, Santa Cruz das Flores, que não é verdadeiramente um lugar atrativo para pessoas no inverno para passarem lá sozinhos, e a ganhar pouco, ainda por cima, o tempo todo, até é das ilhas que está melhor; surpreendentemente outros lugares como a Praia da Vitória enfim, que também não sendo a capital do mundo, também não é um lugar mau para se viver (não é um lugar do fim do mundo, interrompe o apresentador, num tom de riso) e tem
facilidades de contacto está com uma classificação muito baixa. Há aqui (disparidades, diz o moderador) questões surpreendentes…”. Cada um tire as suas conclusões sobre estes
comentários. Consigo concordar plenamente com a parte do “ganhar pouco, ainda por cima”. E, no meu ponto de vista, segundo o meu referencial, aqui não é o fim de nada, mas sim o começo da Europa. Quanto aos níveis de literacia dos florentinos ao longo da história, muito haveria a dizer, mas fica para outra ocasião;
-Viver nas Flores é dar alento aos nossos jovens quando eles sentem a segregação e a injustiça, quando têm consciência que apresentaram o melhor projeto num concurso em que entram as escolas todas dos Açores e já existe o lóbi das ilhas maiores; é explicar-lhes que para conseguirem destacar-se têm de ser mesmo muito melhores do que os outros (o que muitas vezes não é suficiente) pois, na nossa sociedade, nem sempre vence o mérito;
– Viver nas Flores é ver o desconforto, em tantos, por estes Açores abaixo sempre que esta ilha se destaca pela positiva em diversas áreas (da educação, à cultura e ao desporto, não esquecendo o turismo);
– Viver nas Flores é pagar o contributo audiovisual, como todos os outros contribuintes açorianos, para ver as Flores na televisão pública demasiadas vezes por más notícias porque, para as boas, nem sempre “há lugar no alinhamento do telejornal”;
– Viver nas Flores é assistir a um populismo desenfreado, onde são tomadas decisões sem dar ouvidos aos que dão a cara pelas instituições no terreno, aqueles que têm conhecimento de causa (andam todos numa roda viva a tapar buracos aqui e ali, no imediato, resolvendo “o problema de um” em vez de pensar e implementar medidas com uma visão estratégica de futuro) – para quem está atento, é fácil perceber que quem quer ver um seu problema resolvido basta um post nas redes sociais, chamar a televisão (ou ameaçar que vai chamar) e aparece logo uma “brigada de bombeiros” para apagar o fogo;
– Viver nas Flores é estar muito mais longe dos centros de decisão, do que a verdadeira e grande distância que nos separa;
– Viver nas Flores é acompanhar diversos desfiles de passerelle, onde cada um só olha para si e o bem comum não interessa a ninguém; onde os valores perderam o valor, passando a ser regidos pela conveniência individual;
– Viver nas Flores é ser constantemente atingido por afirmações depreciativas, que fazem passar a mensagem de que pouco somos e nada merecemos, é ser vítima de pensamentos de desprezo e de desconsideração que rondam a xenofobia;
– Viver nas Flores é estar farto que nos atirem areia para os olhos, que nos mintam, que nos tentem iludir com promessas que não pretendem cumprir;
– Viver nas Flores é ter um nível de resiliência muito acima do que se possa esperar ou pensar;
– Viver nas Flores é viver numa ilha da coesão e não sentir qualquer benefício por isso;
– Viver nas Flores é prevenir, deixar passar e reconstruir, quando a fúria da natureza nos atinge; é, ou devia ser, reivindicar aquilo a que temos direito, quando somos alvo do abandono e do esquecimento e ter a paciência de ficar à espera na esperança que alguém nos ouça;
– Viver nas Flores é estar só, mas não orgulhosamente só, enquanto tantos pensam “os cães ladram e a caravana passa”, embora nunca o verbalizem;
– Viver nas Flores é, aqui e agora, solicitar a quem opina e julga de fora que faça um exercício mental sério de pôr-se no nosso lugar;
– Viver nas Flores é recear o futuro desta ilha e perguntar “onde e como estaremos daqui a 10 ou 20 anos, se ninguém alterar o rumo que levamos?”
– Viver nas Flores é difícil, não posso afirmar o contrário, constantemente a lutar contra várias marés que nos tentam afundar;
– Viver nas Flores é, sem dúvida alguma, para os corajosos, sonhadores e otimistas ou, talvez, para os loucos…;
– Viver nas Flores é, acredito, provocar ventos de mudança;
Finalmente, e apesar de todas as contrariedades, VIVER NAS FLORES é viver no sítio mais bonito do mundo, dotado de uma paisagem exuberante, pois não coube aos decisores políticos fazer a distribuição das belezas naturais pelas nossas ilhas através de um Decreto Legislativo Regional ou de uma Portaria, para desgosto de muitos…
Rosa Maciel
Natural e residente na ilha das Flores, por opção e com muito orgulho
( Em carta aberta, enviada à redação)